Compreendendo os CBDCs, mais uma fase da evolução do dinheiro.
- Carlos Alexandre Rodrigues

- 31 de ago. de 2021
- 5 min de leitura
Este artigo visa explicar, de forma simples, o que são os CBDCs (sigla para Central Bank Digital Currencies, ou “Moedas Digitais dos Bancos Centrais) e suas ligações com o Bitcoin.
A história do dinheiro pode ser resumida como uma sofisticação para simplificar. Na história da sobrevivência por meio do convívio social, nasce em certo estágio a necessidade de trocar uma mercadoria em excesso por outra. Essa é a primeira manifestação da economia mundial, por meio de uma troca originalmente sem equivalência de valor, e sem nada intermediando.
Neste início, cada grupo definia qual era sua moeda de troca, conforme as necessidades do momento. Sobrou peixe? Troca por outra coisa. Assim, trocava-se lã por milho, milho por batata, batata por tabaco e assim funcionavam os pagamentos. O interessante desse primeiro estágio é perceber que as mercadorias estavam em estado natural e correspondiam às necessidades daquelas pessoas.
Com o tempo, as mercadorias mais desejadas foram ganhando status, passando a uma espécie de “moeda-mercadoria”. O gado, por centenas de anos, foi utilizado como moeda-mercadoria por apresentar algumas vantagens, como locomover-se sozinho e servir para serviço. Seu uso era tão difundido que até hoje alguns termos são derivados, como “pecúnia”.
O mesmo quanto ao sal. É difícil para o homem moderno entender a sua importância num tempo em que não havia geladeira, mas ele era cobiçado por servir para conservar alimentos e dar sabor a eles. Assim, em certo momento deixou de ser um objeto de troca para ser uma forma de pagamento (soldados romanos recebiam assim, derivando daí o termo “salário”). São as espécies mais conhecidas de moedas-mercadorias.
Como as moedas-mercadorias eram perecíveis, a descoberta e o uso do metal foi muito relevante para esta evolução, pois tinha as vantagens da divisibilidade, facilidade de transporte, armazenamento (permitindo a acumulação de riquezas) e ainda, escassez. Isso permitiu que os governos instituíssem a moeda própria (as primeiras, na Grécia, feitas em cobre, ainda traziam a imagem de um boi, num simbolismo evidente) e mesmo o sistema de arrecadação de impostos. Ouro e Prata foram posteriormente escolhidos para cunhagem de moeda, tanto por sua raridade, quanto por sua resistência. Neste estágio, o material da moeda era diretamente ligado ao seu valor intrínseco, ainda não havia uma “abstração” como nas moedas e cédulas, que foram o estágio seguinte dessa evolução.
Após uma passagem pelos chamados “recibos de ourives” (que representavam o ouro depositado com estes profissionais), as cédulas surgem na Suécia em 1661, tirando as moedas metálicas do topo da cadeia e promovendo uma verdadeira revolução nestas relações de pagamento, devido à sua emissão por um Estado, com os governos conduzindo todo o processo de emissão, e garantindo que a quantidade de moeda emitida equivalia à quantidade de ouro que o país tinha guardado (as suas “reservas”). Esse chamado “padrão-ouro” vigeu até 1971, quando os EUA resolveram desatrelar o dólar do ouro, e emitindo moeda com base apenas na “confiança” da nação. Daí o nome ainda utilizado, de “moeda-fiduciária”, sendo que atualmente convivemos então com o uso de dinheiro físico (em claro declínio) e o dinheiro eletrônico, dado que atualmente 90% de todo o dinheiro em circulação no mundo não é físico, mas sim aparece somente em meios digitais (moeda escritural).
O dinheiro, enfim, vem se desmaterializando nesse curso evolutivo.
Em paralelo a esta realidade, o Bitcoin surge logo após a crise de 2008, e com uma proposta bastante ousada: pretendia ser uma moeda libertária, não emitida e não controlada pelo Estado, totalmente digital, baseada em uma escassez matemática, impossível de ser emitida num apertar de botões por qualquer país. Assim, tentando de um lado manter as características de qualquer moeda (funcionar como meio de troca, unidade de conta e reserva de valor), e de outro, as características do ouro (como sua segurança e dificuldade de mineração), o Bitcoin trouxe aos bancos centrais estatais um concorrente privado para o dinheiro físico (não à toa, foi denominado por seu criador de “digital cash”), e que vem ganhando espaço muito rapidamente.
É neste contexto que têm de ser entendidas as CBDCs (sigla para “Central Bank Digital Currencies”, ou “Moedas Digitais dos Bancos Centrais” em português), que, em apertadíssima síntese, seriam então as moedas digitais emitidas pelos bancos centrais, sem emissão alguma em meios físicos.
Note-se que embora certas formas de moeda eletrônica já estejam em circulação há anos – por exemplo, as contas de reservas que os bancos privados são obrigados a manter no Banco Central podem ser considerados exemplos de dinheiro eletrônico público, enquanto os saldos dos clientes em bancos convencionais são formas de dinheiro eletrônico privados – não se deve confundir as CBDCs com as moedas eletrônicas previstas na Lei 12.865/2013, art. 6º, VI, dado que o próprio Bacen já fez tal ressalva, tratando a moeda eletrônica como um mero “modo de expressão de créditos denominados em reais” (Comunicado Bacen 31.379/2017).
Neste sentido, é mais adequado compreender as CBDCs como algo equivalente a uma “criptomoeda estatal”, com a diferença – muito relevante – de que as criptomoedas não são emitidas por nenhuma autoridade pública, enquanto as CBDCs teriam conversibilidade garantida com as moedas nacionais convencionais, exatamente porque emitidas pelos Bancos Centrais.
A utilidade das CBDCs, além de representar, principalmente, uma transformação necessária ao próprio processo de digitalização dos pagamentos que se percebe a olhos vistos, está
(i) em sua praticidade, podendo assim incluir uma grande parcela da população que não possui conta em banco (“desbancarizados”) e usa somente dinheiro físico;
(ii) na possibilidade de replicar, conforme o projeto de cada país, características próprias das criptomoedas, como a rastreabilidade (via blockchain, por exemplo, poderiam ser registradas as transações e outros dados), a criptografia (evitando falsificações), a timestamp (para um controle cronológico de transações), a imutabilidade de eventuais registros, e principalmente, a programação (os chamados “smart contratcs”, que permitiram, por exemplo, a remuneração com juros de uma moeda armazenada, ou, ao contrário, a sua deflação caso não usada em certo período; ainda, seria possível atribuir um valor diferente conforme o produto adquirido), e até mesmo, a utilização além de fronteiras – de modo que um projeto de CBDC que se destacasse, poderia até mesmo substituir o dólar como moeda universalmente aceita.
Não estamos falando de algo muito distante (segundo o BIS, mais de 40 Bancos Centrais pelo mundo, dentre eles o Brasil, já possuem projetos neste sentido – ver “CBDCs – An Opportunity for the monetary system – disponível em https://www.bis.org/publ/arpdf/ar2021e3.htm), e é muito interessante perceber como o projeto original do Bitcoin, com uma filosofia libertária e desgarrada dos Estados, visando acabar com o monopólio dos Bancos Centrais na emissão de moeda, acabou influenciando justamente a estes, em mais uma fase da evolução do dinheiro.


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