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A tokenização de imóveis está mesmo transformando o mercado imobiliário no Brasil? (Artigo Completo)

  • Foto do escritor: Carlos Alexandre Rodrigues
    Carlos Alexandre Rodrigues
  • 13 de mai.
  • 8 min de leitura

Parte 1: A tokenização promete revolucionar a maneira como investimos — mas a lei ainda dita as regras.


De modo bem direto, tokenização é o processo de converter direitos sobre um ativo em um token digital que pode ser movimentado, registrado e negociado em uma blockchain. Diferente da simples digitalização (que apenas converte informações analógicas para formato digital), a tokenização cria uma representação digital com valor intrínseco, regras programáveis e identidade própria dentro de uma rede descentralizada.


No universo dos criptoativos, a tokenização de ativos reais (Real World Assets - RWAs) vem ganhando destaque, abrangendo desde imóveis e obras de arte até direitos creditórios e commodities. Esta tendência representa uma ponte entre o mundo físico e as redes blockchain, potencialmente democratizando o acesso a investimentos tradicionalmente restritos a grandes investidores.


A tokenização representa não apenas uma inovação tecnológica, mas uma potencial revolução na forma como concebemos e negociamos ativos. Como observa Gustavo Cunha em seu artigo "A Nova Infraestrutura do Mundo: O Século da Tokenização", estamos testemunhando a construção de uma nova camada de coordenação e confiança que poderá redesenhar fundamentalmente o sistema financeiro global.


A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) já se posicionou sobre o tema no Parecer de Orientação nº 40/2022, estabelecendo uma taxonomia para classificação dos tokens: Tokens de Pagamento: funcionam como meio de troca (Bitcoin, Ethereum); Tokens de Utilidade: proporcionam acesso a produtos ou serviços específicos; Tokens Referenciados a Ativos: representam ativos subjacentes, incluindo os RWAs. Esta classificação é fundamental para determinar o regime regulatório aplicável.


No mercado imobiliário, a tokenização promete transformar a forma como propriedades são negociadas e financiadas. Teoricamente, um imóvel tokenizado poderia ser dividido em múltiplas frações digitais, permitindo investimentos a partir de valores baixos e criando um mercado secundário mais líquido para estes ativos.


Entretanto, a implementação prática desta tecnologia esbarra em desafios significativos, especialmente no Brasil. O principal deles reside na interseção entre o mundo digital das blockchains e o sistema jurídico tradicional que rege a propriedade imobiliária.


O sistema brasileiro de registro de propriedade imobiliária, baseado em cartórios e matrículas, estabelece que direitos reais sobre imóveis só se constituem ou se transferem mediante registro formal (art. 1.227 do Código Civil). Este requisito legal cria um desafio fundamental para a tokenização de imóveis: como garantir que a representação digital em blockchain tenha eficácia jurídica real?


Parte 2: Tokenizar imóveis não é apenas mencionar um token na matrícula


Na primeira parte desta série, apresentei os conceitos fundamentais da tokenização de ativos e como a CVM classifica os diferentes tipos de tokens. Hoje, pretendo analisar especificamente os projetos de tokenização imobiliária disponível no Brasil e por que eles enfrentam sérios desafios jurídicos para funcionarem.


Os projetos de tokenização imobiliária que pude observar no mercado brasileiro, partem da mesma premissa, de democratizar o acesso a investimentos imobiliários, por meio da tokenização dos imóveis. A proposta parece revolucionária: fracionar a propriedade de imóveis em tokens negociáveis digitalmente, permitindo investimentos a partir de valores acessíveis, de um modo facilitado “como se fosse um pix”. Entretanto, a realidade jurídica impõe limitações significativas a esse modelo.


O problema central reside na transferência da propriedade imobiliária no Brasil. Conforme o artigo 1.227 do Código Civil,  “os direitos reais sobre imóveis constituídos ou transmitidos por atos entre vivos só se adquirem com o registro no Cartório de Registro de Imóveis dos referidos títulos”. Traduzindo do juridiquês esse dispositivo legal estabelece que não existe direito real de propriedade sobre imóveis sem o devido registro no Cartório competente.


Os projetos de tokenização atualmente disponíveis no mercado brasileiro, buscam contornar isso, de modo simplificado, mencionando o token na matrícula do imóvel, normalmente fazendo uma permuta com o proprietário, do imóvel pelo token. Esse modelo conduz obrigatoriamente a um destes dois cenários abaixo:


Primeiro cenário: Os direitos reais sobre o imóvel são registrados e transferidos à empresa “tokenizadora”, que então emite tokens (ou frações) aos investidores. Neste modelo, juridicamente, a tokenizadora torna-se a única proprietária registral do imóvel, enquanto os investidores detêm apenas tokens que representam direitos obrigacionais contra a empresa - não direitos reais sobre o imóvel. Este arranjo exige que o investidor confie não apenas na solidez financeira da tokenizadora, mas também na integridade de um sistema registral paralelo ao oficial.


Segundo cenário: As transações de tokens ocorrem exclusivamente no ambiente digital, sem qualquer registro no Cartório de Imóveis. Neste caso, não há constituição ou transferência de direitos reais, mas apenas o estabelecimento de direitos obrigacionais entre as partes. Como destaca Sérgio Jacomino em seu artigo “NFT's – a tokenização imobiliária e o metaverso registral”, cria-se um “metaverso extrarregistral” desconectado do sistema jurídico que regula a propriedade imobiliária no Brasil.


Ambos os cenários me parecem problemáticos, e o que muitos desses projetos não evidenciam em seu marketing é que os investidores não estão adquirindo propriedade imobiliária no sentido jurídico do termo, mas, quando muito, direitos obrigacionais contra uma empresa. Isso centraliza o risco na figura da tokenizadora - uma contradição óbvia com o princípio de descentralização que fundamenta a tecnologia blockchain.


Para piorar, muitas dessas iniciativas utilizam terminologia que pode induzir o consumidor a erro, apropriando-se do campo semântico diretamente de disposições legais do Código Civil concernentes à propriedade imobiliária e aos direitos reais. Termos como “propriedade digital” não encontram correspondência com qualquer dispositivo da lei civil que regula a propriedade imobiliária.


As promessas de “transferir o imóvel como um pix”, também não se sustentam, pois, no máximo, se está transferindo um direito obrigacional como um pix. O registro imobiliário no Brasil, tem fases para sua segurança que tornam impossível de cumprir essa promessa, e não é apenas porque o NFT que representa o imóvel é passível de acompanhamento na blockchain que isso muda alguma algo – e veja-se que eu nem mencionei a necessidade de participação da CVM no processo antes de colocar estes tokens à venda...


Este cenário pode configurar possíveis infrações às regras consumeristas no que respeita ao direito à informação adequada e clara acerca do negócio (art. 6º do CDC). Ora, quando a empresa promete “propriedade” mas entrega apenas um direito obrigacional, há uma disparidade significativa entre a expectativa criada e a realidade jurídica subjacente, e se você não tem base jurídica suficiente para entender isso, pode estar comprando uma coisa por outra sem saber.


Muito se apega ao fato de que a Corregedoria Geral de Justiça do Rio Grande do Sul estabeleceu, por meio do Provimento 38/2021, requisitos formais para a lavratura de escrituras públicas envolvendo tokenização imobiliária. Isso é verdade, mas não nos tira do primeiro cenário e não resolve o problema fundamental da dissociação entre a “propriedade digital” proclamada nas plataformas blockchain e o registro imobiliário oficial. Ou se, se resolve, resolve para a empresa tokenizadora, pois para os fins jurídicos, a proprietária é ela: eu só tenho um token que me dá um direito contra ela.


Até aqui, acho que esse artigo foi um pouco desanimador, e obviamente posso estar sujeito a críticas de quem acha esses cenários bons. Veja-se que eu sou entusiasta e até estudioso da blockchain, mas não consigo ver isso de forma diferente da que eu trouxe, considerando o cenário legal vigente no Brasil.


No próximo trecho, discutiremos caminhos para uma tokenização imobiliária juridicamente possível, que respeite os requisitos legais vigentes sem abrir mão das vantagens da tecnologia blockchain.


Parte final: o que é possível, além do hype e dos slogans


Nas duas partes anteriores desta série, examinamos os conceitos fundamentais da tokenização de ativos e os desafios jurídicos enfrentados pelos projetos de tokenização imobiliária no Brasil. Agora, exploraremos caminhos possíveis para uma implementação juridicamente segura desta tecnologia, que respeite tanto a inovação quanto os requisitos legais estabelecidos.


Eu parto da premissa que um sistema de tokenização imobiliária juridicamente viável no Brasil não pode prescindir da participação ativa dos Cartórios de Registro de Imóveis (CRIs). Embora frequentemente criticados por sua suposta burocracia, os CRIs desempenham papel fundamental na segurança jurídica da propriedade imobiliária no país, pois como bem definido por Sérgio Jacomino, os registradores imobiliários atuam como verdadeiros “gatekeepers” descentralizados, garantindo a legitimidade das transações e impedindo o “duplo gasto” físico-jurídico - problema análogo ao que a tecnologia blockchain resolveu para as transações digitais:


“(…) os registradores “resolvem o problema do duplo gasto físico-jurídico, gerenciando igualmente os direitos reais, e respondendo por eventuais erros e prejuízos.”


A tokenização imobiliária que desconsidera o sistema registral vigente (ou a que pretende simplesmente substitui-la) compromete a segurança jurídica e expõe investidores a riscos desnecessários.

Mas então como integrar o sistema registral tradicional à inovação tecnológica representada pela tokenização?


Um caminho promissor está na tokenização não do imóvel em si, mas da certidão de situação jurídica atualizada do imóvel (criada pela Lei 14.382/2022, com a inclusão do §9º ao artigo 19 da Lei de Registros Públicos). Esta abordagem, já contemplada em projetos-piloto relacionados ao DREX (a moeda digital do Banco Central), permitiria a criação de um token que represente informações atualizadas e confiáveis sobre o imóvel, sem a pretensão de substituir o registro oficial.


Esta modalidade, num primeiro momento, poderia facilitar significativamente operações como o home equity (empréstimo com garantia imobiliária), um produto financeiro ainda subdesenvolvido no Brasil. A tokenização da certidão permitiria que instituições financeiras acessassem informações confiáveis e atualizadas sobre o imóvel, reduzindo custos de transação e facilitando a avaliação de riscos, sem outras invencionices na matrícula, tornando tal solução de implementação possível mesmo no estágio legal atual.


Fora disso, a tokenização propalada pelos projetos vigentes, só me parece viável com a criação de uma infraestrutura que integre os registros imobiliários e as plataformas blockchain. E mesmo neste cenário, o registro oficial no CRI continuaria sendo a única forma de constituição e transferência de direitos reais sobre imóveis, mas as tecnologias blockchain seriam utilizadas para aumentar a eficiência, transparência e rastreabilidade das transações.


Ou seja, esta integração exigiria a padronização das informações registrais em formato digital estruturado, o desenvolvimento de protocolos de interoperabilidade entre os sistemas registrais e as redes blockchain (algo ainda um pouco distante até entre redes blockchain), a definição clara do papel dos custodiantes dos tokens imobiliários (requisito tão importante quanto preterido – há um artigo muito bom a respeito, escrito por Nathalia Lima Lopes e Renato Mirisola Rodrigues).


Ainda, há a possibilidade de os CRIs funcionarem como “oráculos” confiáveis para conectar o mundo físico-jurídico ao digital. Eu gosto dessa ideia, e ela me parece muito adequada para integrar a nossa tradição e segurança jurídicas a este cenário de tokenização.

Enfim, a tokenização imobiliária juridicamente segura não pode pretender, de supetão, substituir ou contornar o sistema registral centenário que existe no país, mas deveria pensar modos de complementá-lo e potencializá-lo, pois a tecnologia blockchain, por si só, não resolve os desafios de conectar o mundo físico ao digital de forma juridicamente segura. Como escreveu Kevin Werbach em "Trust, but Verify: Why the Blockchain Needs the Law", a blockchain precisa do Direito tanto quanto o Direito pode se beneficiar da blockchain.


O futuro da tokenização imobiliária no Brasil dependerá da capacidade de serem utilizados modelos que respeitem tanto a inovação tecnológica quanto os fundamentos jurídicos da propriedade imobiliária. O potencial para aumentar a liquidez, democratizar o acesso e reduzir custos no mercado imobiliário existe - mas só será plenamente realizado, ao que me parece, quando encontrada uma conexão entre o sistema registral tradicional e as novas tecnologias, em vez de tentarmos contorná-lo em nome de uma suposta disrupção, como vem sido feito.


Do contrário, pelos projetos até postos, corremos o risco de verificar a ocorrência exatamente do que resumiu Jacomino no artigo que mencionei: “o atual sistema de registro de direitos não seria substituído, mas soterrado abaixo de uma nova camada de transações “imobiliárias” líquidas, leves, rápidas e... inseguras.”



Fico a disposição para debates no Linkedin ou no meu Instagram: @car_advogados

 
 
 

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